O conto a seguir tem uma curiosidade sinistra. Tive a idéia principal do romance, da flauta como arma e do suicídio através de um sonho. Após estudar alguns detalhes complementares, acabei formatando a prosa final que depois passei para João Vicente desenhar e transformar para história em quadrinhos. A história foi feita e publicada no fanzine “Franca Zona” n° 03 (assim que conseguir uma cópia da quadrinização, postarei aqui). A HQ recebeu diversos elogios por seu roteiro lírico, inclusive elogios de outros estados. Algum tempo depois, um conhecido que nunca tinha visto o fanzine disse-me que já conhecia a história. Estranhei, mas ele insistiu e afirmou que se tratava da história da criação do referido instrumento musical. Tratei de pesquisar e fiquei abismado em ver que a lenda da origem da flauta tem exatamente os mesmos elementos principais da história que me surgiram no sonho. Fiquei indignado e não tenho mais o carisma que tinha antes pelo escrito.
Os gafanhotos roçavam suas longas patas, levando o trololó para a audição de todos, como anúncio de início.
Havia chegado a hora da Festa Anual da Floresta de Diamantes começar.
Os gnomos das redondezas apressavam o comitê de boas vindas. Fadas flutuavam por entre os arbustos, seguidas pelos sacis que espalhavam o odor de fumo queimado por seus cachimbos. Pirilampos iluminavam o caminho, ajudados pela azulada luz da lua cheia. Anões, víboras, duendes e chacais vieram das montanhas mais distantes compartilhar a alegria de mais uma Festa da Floresta de Diamantes.
Todas as entidades se dirigiam ao coração da floresta, ignorando suas diferenças místicas para se unirem em um só clã de felicidade.
Batendo com muita habilidade as suas longas asas coloridas e deixando um rastro de poeira fosforescente, uma fada atrasada sorria ao saber que não era longa a distância até o seu destino. Apesar da pressa e da grande ansiedade de provar a festa, a fada parou por um momento ao ouvir uma solitária melodia soprada de uma flauta, que deteve sua atenção por vir em direção contrária à festa.
Olhando ao redor, procurando a origem do encantador som, a fada percebera um gnomo encostado em um cogumelo cor de rosa, com as pernas cruzadas tocando uma trabalhada flauta artesanal. Era um gnomo de pele verde (logo, era de origem da própria Floresta de Diamantes).
- Porquê não está na festa? – pensou a fada, que aos poucos foi sentindo uma certa angústia na tonalidade da melodia. Esquecendo seus interesses anteriores com relação à festa, aproximou-se em frente ao sombrio músico.
Este, surpreso, parou de tocar sua flauta ao perceber a presença da bela admiradora que possuía a pele e os olhos brancos, cabelos lisos e dourados cobrindo parte de seus seios que tentavam fugir dos decotes do transparente vestido de teia de aranha. Seu corpo era escultural, seu rosto era de um anjo imaculado e suas asas coloridas e transparentes.
A fada notara, além de surpresa, uma grande melancolia nos olhos do gnomo, mas sua ingenuidade causada por uma paixão momentânea não lhe permitira um estudo crítico sobre o estado emocional do gnomo.
- Sou a fada Pym. E você?
- Sou Tot, e mentiria se escondesse minha perplexidade rente sua beleza. Mas com licença, preciso me ausentar. – falou o gnomo sem mudar suas expressões nos olhos.
E antes que ele se levantasse, Pym, com um tom de perda perguntou:
- Não vais à festa?
- Não devo. – disse Tot, antes de sumir em uma chuva de estrelas azuis.
Pym não conseguira entender o motivo de tanta tristeza e a ausência de Tot na festa. Mas se lembrou que poderia se informar sobre o gnomo com o sábio dos mares. Ela ouvira falar que ele sabe tudo sobre todos.
Dizem que uma fada tem o dom de se apaixonar por um ser fazendo com que este se apaixone por ela instantaneamente. Mas isso pode ocorrer também com outros sentimentos fortes, assim como o ódio ou a depressão. Pym pela primeira vez em sua existência sentira isso.
Com suas asas batendo como nunca, Pym chegou em poucos minutos à festa, que já se encaminhava para a cerimônia de encerramento.
- Onde se encontra o sábio dos mares? – perguntou Pym, ao entrar na clareira em festa, a um anão dos Alpes. Este, por um momento, só fez voltar o seu olhar para um ancião com o corpo coberto de escamas cinzas, que empunhava um tridente prateado maior do que seu próprio corpo.
Pym sem agradecer o favor prestado pelo anão, dirigiu-se como hipnotizada em direção ao ser písceo e antes que este notasse a chegada repentina da fada, Pym precipitou-se. Com curiosidade interrogou-o:
- Oh, grande sábio dos mares. Saberás tu o motivo pelo qual se encontra deprimido o gnomo Tot, por quem me apaixonei?
O sábio olhou vagarosamente para o rosto de Pym e com uma voz grave e rouca, falou à questionadora:
- Por ser uma fada que ama alguém, este alguém também ama você. Mas como não é isto que deseja saber, afirmo que não é simples depressão que atinge o gnomo Tot. E sim, um tipo de feitiço criado há tempos por uma solitária bruxa do Pântano do Sul. Numa espécie de espírito que entra em entidades como nós, nos causando um eterno estado de angústia que só acabará com a morte solitária do enfermo. Este espírito do mal abandonará o corpo morto da entidade para encarnar em outra vítima de qualquer parte de nosso planeta.
Com mais curiosidade ainda, a fada perguntou:
- E haverá uma cura para este mal? Uma maneira de matar este espírito?
- A maneira única que se tem conhecimento para a eliminação total deste mal, seria o enfermo assassinar com as próprias mãos a pessoa mais amada de sua vida. Assim, ele estaria matando sua própria doença e eliminando esse mal de uma vez por todas. Por isso aconselho você a afastar-se de Tot, pois todos os casos que conheci do Espírito do Mal, acabaram em morte solitária do enfermo, já que este não pode ter relacionamento algum para evitar o amor, e assim, evitar tragédias.
Ao terminar de ouvir tudo, a fada Pym abaixou sua cabeça e desapareceu da festa para chorar suas lágrimas no fundo de alguma caverna escura.
Pym entendera então, o motivo de Tot privar-se de seus relacionamentos, mas sabia que enquanto amasse o gnomo, este por sua vez, amaria ela também.
Dias se passaram e Pym agora voava calmamente pela Floresta de Diamantes, carregando consigo o estigma moral da agonia de um romance proibido e sem chances de se desfazer.
Ao passar certo momento por um gigantesco carvalho, Pym ouviu um longínquo som de flauta que reconheceu imediatamente como a flauta de Tot.
Nervosa, a fada olhou ao seu redor como se estivesse faminta, procurando seu alimento perdido. Ao perceber que a música continuava e que não se originava de nenhuma direção, olhou instintivamente para cima e enxergou seu amado no mais alto dos galhos, soprando sua flauta, olhando para as estrelas com seu rosto encharcado de lágrimas.
Pym sentou-se nas raízes expostas do carvalho, fitando seus olhos no cinzento horizonte e deixou suas lágrimas escorrerem no ritmo desanimado da melodia expressada pela flauta artesanal.
Tot estava tão influenciado por seus sentimentos negativos que não percebeu a presença da fada perecedoura e, com certeza, se tivesse percebido, teria desaparecido no mesmo instante para esconder o choro desprezado pela felicidade.
Desencontrados apenas por metros de distância, ali permaneceram durante horas e mais horas padecendo por uma agonia atormentadora sem o mínimo de pudor que afligia a moral e a decência sentimental de ambos os sofredores que, apesar de perfeitos e apaixonados, não poderiam ser felizes juntos ou até mesmo separados, pois Tot Carregava dentro de si um mal criado pelo ódio ou talvez pelo desprezo, ou talvez por impotência e quem sabe, até mesmo pelo próprio amor.
Depois de muito se molhar com as próprias lágrimas, Pym não agüentava mais a pena que estava pagando, levantou seu rosto olhando a flauta cantante e gritou para que seu flautista pudesse escutar:
- Não sei o que fazer, mas sei que sofrerá mesmo se me tiver ao seu lado... – e entre soluços e gemidos, continuou - ...Posso subir até aí e beijar teus lábios?
Tot parou de tocar e abaixou a sua cabeça para encontrar o olhar entristecido da fada que ansiosa, esperava uma resposta.
Ainda com o rosto encharcado, Tot não hesitou em segurar firmemente sua flauta com as duas mãos e enfiar em seu tórax o objeto fino e comprido, que não encontrou dificuldade de nascer nas costas do gnomo, com restos de um coração dilacerado e muito sangue escorrendo do bocal do instrumento, que se tornara uma arma para a autodestruição. Tudo aconteceu em segundos muito preciosos, e apesar da velocidade quase impossível alcançada pelas asas da fada, esta só conseguiu aparar o corpo do gnomo, que já obedecia a lei gravitacional. Sem tirar as mãos ao redor da flauta que atravessava seu corpo, Tot deixou-se beijar pela boca desesperada de Pym que agora estava com gosto de sangue e lágrimas.
Após o primeiro e último beijo, os olhos de Tot se fecharam e seu corpo amoleceu, virando pó que, levado pelo forte vento, sumiu entre as nuvens cinzas que descarregavam trovões que não eram fortes o suficiente para abafar o grito alto, agudo e histérico lançado pela fada através do céu negro da Floresta de Diamantes.
Pym desesperada de ira e inconformação, gritava empunhando a flauta ensanguentada que era banhada neste instante pela forte chuva que desabara no momento.
Um ano se passou e lá estavam todos reunidos na alegria de mais uma Festa Anual da Floresta de Diamantes. Gnomos, duendes, corujas, fadas, feiticeiras e todos os outros brincavam e se divertiam ao som das harpas eclesiásticas dos anjos.
Não muito longe dali, duas bruxas atrasadas, voavam lado a lado em suas vassouras mágicas em direção ao coração da floresta. Ao sobrevoarem o carvalho gigante, ouviram uma triste música soprada pela flauta de uma fada sentada no mais alto galho.
- Aquela não é a fada Pym? Faz muito tempo que não a vejo – murmurou uma bruxa a outra.
- Sim. É ela mesma.
- Por que não vai à festa?
- Ouvi dizer que ela está com o espírito do mal.