Cerca de vinte internos postavam-se
vegetativos em sua sala de estar. Nada a
fazer, senão deixar transcorrer o tempo, tomar os remédios que os enfermeiros
trazem, comer, cagar, dormir, até a hora de morrer. Dificilmente algum recebia visita de familiares. Outros nem tinham familiares. Alguns encontravam-se sentados em poltronas,
cadeiras e uns poucos, no chão mesmo.
Uns outros vagavam pelo espaço amplo, sem nenhum sentido exato de
direção. Um brincava de fazer labirinto,
com as próprias mãos, com uma barata tonta numa parede e dois estavam
hipnotizados pelo aparelho de televisão suspenso próximo à altura do teto,
sintonizado num canal que transmitia uma repetida novela vespertina.
A porta dupla principal se abriu com Bronu e
Armando sendo trazidos por dois enfermeiros.
Foram jogados violentamente no chão do meio da sala e lá permaneceram
caídos, totalmente dopados pelos tranquilizantes. Armando teve uma das lentes dos óculos
rachada com a queda e Bronu babava com a boca aberta e os olhos catatônicos. Logo em seguida Tarlos entrou sozinho,
cabisbaixo, calado, com cara de choro, sentando-se no chão, encostando suas
costas num canto de parede.
Um dos enfermeiros tirou um pequeno
recipiente de álcool em gel de um bolso da bata, derramou um
pouco do conteúdo em uma de suas mãos e ofereceu o vidro ao colega:
- Tá afim, Sid? É sempre bom esterilizar as mãos depois de
pegar nesses lixos. Não sabemos o que
podemos contrair deles.
O segundo aceitou a oferta repetindo o ritual
de limpeza das mãos dizendo:
- Tem razão Rafa. Esses imundos só servem mesmo como objeto pra
lavagem de dinheiro. – ambos sorriram sarcasticamente terminando de esterilizar
as mãos.
Rafa olhando os internos disse em tom baixo
para Sid:
- Cara, aquela novata ali é um tesão, né?
Sid olhou para a garota citada e revidou em
seguida:
- Vamos ver quem come ela primeiro?
Começou uma discussão em voz baixa:
- Eu é quem consigo fácil. Basta eu dizer que ela vai pra ação, que vai
viajar pra outro estado etc. Consigo
rapidinho.
- Eu falo pra ela da tua namorada.
- E eu provo que tu é casado com filha
recente.
- Eu coloco um monte de maconha na mente dela
e ainda levo ela pra tudo que é balada top.
- Eu levo ela pra passear de barco.
- Tá bom.
Vamos ver com o passar do tempo, quem consegue primeiro.
- Beleza, feito! – finalizou Sid trocando um
cumprimento de mão fechada com Rafa.
Ambos se retiraram do recinto, deixando os
internos trancados na grande sala de estar.
Tarlos choramingava baixinho, sentado no chão
num canto da sala. Frustrado por saber
de sua incompetência como líder, de ver que suas atividades planejadas não
agradavam a todos, que elas sempre deixavam a desejar na qualidade de suas
execuções e que estava sempre usando de argumentos chulos e de incoerência
infundada para ludibriar todos os internos.
Era um personagem fútil perpetuado numa hierarquia militarista,
antidemocrata e conservadora que lhe servia como auto afirmação maquiadora de
sua asneira performática.
Pensativo e choroso, remoeu suas dores
latentes por horas seguidas, sentado no chão, até que Bronu se levantou
vagarosamente, ainda atordoado pelo efeito narcótico do tranquilizante que se
esvaia, e sentou-se a seu lado.
- Puta que pariu, senhor. Temos de fazer alguma coisa. – disse o
energúmeno para aquele que tinha como mestre.
O diálogo e o fedor de nicotina de Bronu
tirou Tarlos do ostracismo:
- O que você sugere?
- Puta que pariu! Olha a cara dos outros. Estão todos dormindo acordados. Não conseguem enxergar o que nós realmente somos
e queremos. Temos logo que firmar nosso
poder sobre esse grupo. Vamos tirar
todos que questionam muito. Porra, eu
crio algumas provas, acuso quem for preciso de homofobia e armo maior barraco,
espalhando tudo por debaixo dos panos.
Nisso eu sou bom!
- E o que eu faço?
- Vai tomar no cu! Tu é muito anta mesmo. Começa enrolando eles, atrasando alguns
direitos deles, se possível até corta o que der pra cortar. Aproveita agora e faz um discurso, pra que
eles pensem que estão sendo motivados.
Eles não vão nem perceber que estão sofrendo a maior baixa da história
desse grupo. Daí a gente acaba com a
equipe e passa a reinar absolutamente.
Armando que não havia se recuperado da
dosagem de tranquilizante, ainda estava deitado no chão. Com os olhos semiabertos, por trás dos óculos
com uma lente quebrada, babava como um boi e gemia baixinho de modo que ninguém
escutava:
- Meu senhor!
Meu senhor, tá certo! Meu
senhor!...
Tarlos se empolgou com as palavras de Bronu,
arregalou os olhos, encarando um ponto inexistente em sua frente com sua
expressão de doido, que lhe é peculiar, e com um punho fechado erguido rebateu:
- Tem razão.
Vou acabar de vez com qualquer tentativa de democracia, expulsar quem
for ameaça pra meu governo, tirar qualquer direito desses imbecis e enrolar
eles realizando atividades chinfrins, dizendo que estou fazendo o meu melhor e
que eles têem de me ajudar. Vai ser
fácil!
Bronu conseguiu encontrar um cigarro, todo
amassado, em seu bolso, acendeu com um isqueiro surrado, deu uma longa tragada
e incentivou seu ídolo:
- Puta que pariu! Vai lá, caralho! Mostra pros idiotas qual é a hierarquia.
Tarlos se levantou num salto, subiu numa
cadeira e começou a monologar em sua eterna baixa voz:
- Pessoal, prestem atenção. Temos de nos unir, mas pra isso preciso da
ajuda de vocês. Primeiro, vocês terão
que obedecer a hierarquia e a hierarquia é a seguinte: Selvia como coordenadora
nacional e eu como coordenador local, elegido por única vontade de Selvia. Vocês terão de concordar com isso pra terem a
meritocracia que eu decidirei. Também
terão de entender que vale transporte vai demorar pra sair, camiseta eu escolho
quem ganha, blá, blá, blá...
Os internos começaram a olhar na direção de
onde vinha o murmúrio. Dois deles
dialogaram:
- O que esse mané tá falando?
- Não sei.
Ele sempre fala tão baixo que não dá pra entender porra nenhuma. Quando entendo, percebo que ele não diz coisa
com coisa. Mas ele ainda consegue
enrolar a gente assim.
- Já percebi que ele tenta ser nosso líder.
- Pois é, o retardado pensa que lidera a
gente.
- No fundo ele só quer se beneficiar com os
benefícios que o pessoal do staff
libera pra quem puxa saco deles. Porque
tudo que ele faz tem uma qualidade eternamente amadora.
- Pior que além de ser incompetente, ainda é
ditador.
- É muito babaca mesmo.
Duas horas depois, Tarlos ainda estava
impondo sua retórica para meia dúzia de enfermos, que escutavam sem entender
direito o que o mequetrefe dizia.
Armando ainda deitado, agora estava com as calças sujas de fezes e em
seu delírio resmungava:
- Meu senhor!
Meu coordenador! Meu senhor!...
Uma porta se abre e o enfermeiro Rafa entra,
caminhando direto para uma interna que estava sentada num sofá. O mesmo segura ela pelo braço erguendo-a:
- Vem aqui comigo que a gente vai fumar um
baseado. Se você fizer tudo que eu
quero, ainda consigo te escalar pra uma viagem.
Ambos saem por uma segunda porta que é
trancada em seguida.
Bronu que percebeu a movimentação diz em voz
alta:
- Puta que pariu, vai rolar onda. Vou já arrumar um barraco pra fazer.
Alguns minutos depois aparece o enfermeiro
Sid que olha ao redor e resmunga:
- Merda, cheguei tarde. Aquele fresco já levou a novata. – e sai
imediatamente.
Tarlos incansável em seu devaneio, nem repara
quando adentra no recinto uma figura andrógina com cabelos encaracolados, olhos
claros e um colete verde. Era a
coordenadora Selvia que havia chegado para impor todas as suas vontades sobre o
grupo. Atrás dela dois enfermeiros
prontos para cumprirem qualquer ordem dada.
A moça, que mais parecia um travesti, aponta pra Tarlos e grita:
- Cala a boca, panaca! Quem diz o que você fala ou faz sou eu.
Tarlos desceu da cadeira, calado e cabisbaixo
em sua submissão. Logo, a figura
andrógina começa o seu discurso:
- Atenção, imbecis! Eu quem mando nessa merda aqui. Vocês são muito importantes pra mim, porque,
assim como eu, são produtos pra lavagem de dinheiro. Portanto, não interessa a merda que aquele doente
mental estava falando antes, mas simplesmente obedeçam e calados. Aquele que questionar muito será
desligado. Pra isso, basta eu usar
aquele gay ali como suposta vítima de
homofobia.
Bronu não se conteve e gritou eufórico:
- Puta merda!
É isso aí. Vamos acabar com essa
porra! – antes que ele continuasse, Selvia retrucou:
- Cala a boca, baitôla! Senão eu mando
cortar o teu suprimento de cigarro.
O discurso continuou por horas, sendo que o
desentendimento era contínuo, havendo sempre ímpeto de euforia de um ou outro
presente, prevalecendo sempre a imposição autoritária do staff. O quadro de
hierarquia era de características militares, sendo que o coleguismo e a indicação
destinavam regalias e benefícios, desprezando experiência ou sapiência. Dentre os enfermos, a grande maioria era
dopada diariamente. Cativos de uma
cultura tenebrosa onde a servidão era vista como perfil a ser qualificado para
cada interesse específico. O complexo
como um todo, lavava dinheiro provindo de contribuintes e pregava uma pseudo
filosofia humanitária. No fim, tudo se
resumia a uma pequena unidade de ricos que mantinham-se anônimos, protegidos
por uma certa quantidade de funcionários dignos do processo corruptível,
sustentados por um significante aglomerado de doentes esquecidos, incapazes de
enxergarem a verdade sobre o esquema e que viviam enclausurados num ciclo
vicioso decadente.
Esta é uma história fictícia, mas que retrata
fielmente a realidade do universo manicomial que tem de ser extinto. Porventura, esta ficção pode ser também uma
pintura barroca de centenas de
organizações espalhadas pelo mundo contemporâneo neo liberal, que emprega seus sentimentos em valores moralistas e
dogmáticos.
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