Auto biografia artística virtual. Registros de eventos, resenhas, desenhos, crônicas, contos, poesia marginal e histórias vividas. Tudo autoral. Quando não, os créditos serão dados.

Qualquer semelhança com a realidade é verdade mesmo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Num Barril De Pólvora

Trabalhei três anos e meio como Auxiliar Administrativo no departamento de Estatística da Unidade Prisional do Puraquequara.  Considerado o presídio mais violento da cidade de Manaus, víamos algumas caras de desespero nos presos que chegavam.  Como eu trabalhava na área administrativa, não tinha acesso à área operacional.  Contudo, a rotatividade de entrada e saída é muito grande e é inevitável cruzar com esse fluxo ao transitar pelo prédio.  Numa antiga rebelião, os rebelados usaram a cabeça de um morto pra usar como bola num jogo de futebol entre eles.  As vítimas sempre eram delatores (caguêtas) ou estupradores.
Uma falha imbecil da engenharia de projeto do presídio foi colocar o refeitório, que é usado por todos os funcionários, no mesmo prédio operacional, onde ficam as galerias das selas.  Não adiantava muito as áreas técnicas e administrativas serem em prédios separados, se todos os funcionários tinham de adentrar na área operacional duas vezes ao dia (café da manhã e almoço).  Certo dia, eu estava almoçando com alguns colegas neste maldito lugar.  Não é muito grande.  Cerca de 30 pessoas almoçavam juntos.  Conversávamos rotineiramente sobre os mais diversos assuntos, quando começamos a escutar um estranho barulho que repentinamente cresceu vindo do interior das galerias.  Eram gritos de terror, ruídos de briga e de ferros batendo.  Eu nunca tinha escutado aquilo, mas sabia do que se tratava.  Todos ali presentes sabiam.  Era o início de uma rebelião.  Houve cerca de 5 segundos de silêncio entre nós, em que imperava aquele terrível barulho que não queríamos acreditar estarmos ouvindo.  Só havia uma coisa a fazer.  Correr.  Correr pra salvar a própria vida.  Cerca de 30 pessoas se espremia tentando passar numa porta com uma média de um metro de largura.  Após passar pela porta do refeitório, teríamos de atravessar uma grade, com entrada também com um pouco mais de um metro, então tínhamos acesso ao mesmo corredor que dava acesso às galerias.  Nesse momento olhei pra trás e vi uma cena inesquecível.  Uns três agentes de segurança tentavam fechar o portão enquanto uma dúzia de presos tentava abri-lo na força bruta.  Um dos agentes estava sem camisa e com alguns hematomas.  Não quis ficar pra ver qual lado sairia vencedor.  Corremos por um corredor de grades com uns 30 metros e finalmente chegamos no portão automático que dava acesso ao prédio administrativo, saída principal e recepção.  Um sistema automático controla abertura e fechamento de 4 portões.  Sendo que pra qualquer um abrir, precisa que os 3 restantes precisam estar fechados.  Isto é, só abre um portão por vez.  Ainda tivemos de esperar por volta de 1 minuto até que esse nosso portão abrisse nos dando a sensação de salvos.
A tentativa de rebelião acabou sendo frustrada.  Os agentes conseguiram, impossivelmente, fechar o portão isolando os presos que portavam ferros enferrujados como armas.  O agente sem camisa foi o pego como refém e conseguiu escapar, desabotoando rapidamente a camisa num momento de distração dos internos, deixando a camisa nas mãos deles.  Imediatamente o trabalho foi suspenso e todos os funcionários deslocados para a área aberta frontal do presídio.  Uma irmã minha, que era minha gerente, me abraçou chorando depois de ter gritado muito meu nome de lá de fora no desespero ao saber que eu estava no refeitório em tal momento de terror.
Depois refleti no que poderia acontecer comigo, caso eu fosse pego como refém.  Eu trabalhava vestido socialmente.  Até explicar que eu era um simples pião, ia apanhar muito, se não me matassem pensando que eu fosse algum importante funcionário da administração.
Após a adrenalina baixar, minha raiva era ter de deixar meu almoço pra trás.  Um pouco mais de uma hora depois, a tropa de choque adentrava nas dependências do presídio para manter a ordem da melhor maneira que eles sabiam, com muita porrada.
Vários meses depois eu pedia minha demissão.  Trabalhar com presos de toda variedade de periculosidade não era tão difícil quanto trabalhar com advogados, policiais e oficiais de justiçaEsses sim eram os verdadeiros bandidos.  Sem querer, acabei aprendendo muita coisa nesse período.  Não só quanto a legislação penal, mas também lições de vida sobre violência e liberdade.  Paga-se um preço alto pra ser livre e mesmo assim não temos toda a liberdade que deveríamos ter, mas a sobrevivência por trás das grades ainda é um inferno muito maior do que se imagina.

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