Auto biografia artística virtual. Registros de eventos, resenhas, desenhos, crônicas, contos, poesia marginal e histórias vividas. Tudo autoral. Quando não, os créditos serão dados.

Qualquer semelhança com a realidade é verdade mesmo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Com a Família Homicide

Em alguma parte do início da década de 1990, eu caminhava embriagado numa madrugada de final de semana cruzando a ponte que liga o bairro Nossa Senhora de Aparecida ao centro da cidade.  Na época eu ainda bebia (hoje nem sequer socialmente em datas comemorativas) cerveja, vinho, cachaça, álcool de farmácia e o que mais provocasse embriaguez como bom e fiel junkie.
A meu lado o amigo Renison em estado equivalente ao meu.  Voltávamos de algum show, bar ou qualquer outra devassidão notívaga dentre as dezenas que passávamos frequentemente juntos.  Rotina certa dos finais de semana, a violência urbana já não nos amedrontava, fazíamos parte da marginalia e não tínhamos nada de valor, além de nossas medíocres vidas, que pudesse interessar qualquer bandido aquela altura.  Como é característica do bêbado ter o seu momento (singular ou plural) de idiotice.  Questionei a ele:
- Renison, tu tinha coragem de pular daqui?
Estávamos exatamente no meio da ponte e como o rio fartava suas águas devido à época do ano, estava convidativo para o cumprimento da imbecilidade.
Renison sem pestanejar falou:
- Claro!
Era a confirmação que eu precisava ouvir para deslanchar minha carga de argumentos.
- Pula nada!  Tu não tem coragem, não.  Não é homem o suficiente pra isso.  Duvido!  Quero ver!
- Rapaz, olha que eu pulo. – respondeu ele.
Continuei meu trabalho de diabinho com o tridente incentivando a desgraça, mas minha frase derradeira foi:
- Se tu pular dessa porra eu te pago uma grade de cerveja.
Não deu outra.  Paramos de caminhar com Renison olhando pra um lado e outro, pegando distância para trás com o intuito de ganhar impulso pro pulo.  Por um momento eu pensei que ele estivesse blefando e que não levaria a sério o que eu não estava levando a sério.  Contudo ele foi categórico:
- Quer ver como eu vou pular dessa merda? – começou a correr e se atirou por cima do parapeito.
Num segundo que pareceu câmera lenta, eu soltei um gemido:
- Ei, porra! – como estava perto do parapeito me estiquei com a burra intenção de segurá-lo, mas minha mão bêbada só conseguiu segurar um pedacinho da camiseta do amigo que cumprira com a promessa suicida.  O pedaço que segurei ficara em minha mão.  Renison mergulhara na escuridão.
Dois segundos mais tarde eu escutei um distante barulho de mergulho em água.  Olhei pra baixo e só vi uma indefinida movimentação na superfície do rio.  A ponte era iluminada em sua plataforma para fluência segura do trânsito, mas abaixo dela, a escuridão dominava.  Uma queda com cerca de trinta metros de altura em água poluída, escura e fria.  O mais preocupante era que o coitado estava bêbado.
Imediatamente me arrependi do meu jogo de incentivo à loucura.  Ainda cheguei a gritar algumas vezes para baixo:
- Renison!  Como é que tu tá?  Tu tá bem?
Não havia resposta, mas eu escutava movimentação na água.
Entrei em desespero e comecei a pensar:
- Puta que pariu!  Me fodi!  E agora?  O que vou falar pra polícia?  Vão pensar que eu empurrei ele.  Vou ser preso.  Tô fodido!  Que merda!
Após alguns minutos de desorientação olhando a escuridão do vácuo abaixo da ponte e perdido nos pensamentos de conseqüências maléficas que sofreria, eu voltei a raciocinar e tomei a decisão de sair dali o mais rápido possível.  Até a embriaguez ficara mais branda.  Não hesitei mais e tomei o rumo da extremidade que me levaria ao centro da cidade onde me refugiaria como um rato entre o labirinto dos canos de esgotos.
Próximo da saída que eu me dirigia da ponte de uma das laterais que dava acesso ao rio, vi a figura encharcada de Renison surgir da escuridão, sacudindo sua farta cabeleira como um cão secando seus pêlos de um banho.  Não demorou pra eu emparelhar-me a seu lado e continuarmos nossa caminhada pelas ruas.  Fomos direto pra casa dele onde, junto com seus irmãos, nos reuníamos pra beber, fumar e escutar um depredado aparelho de som.  Não trocamos uma palavra sequer durante a caminhada.
Quando chegamos na casa da “família Homicide”, todos já estavam desmaiados.  Nos juntamos aos demais.  Estávamos muito cansados, bêbados e precisávamos repor nossas energias para continuarmos a bebedeira horas mais tarde.  Ao acordar, já preparávamos a comida coletiva ao som do velho aparelho quando nos lembramos do ocorrido na madrugada passada.  Os irmãos Sula, Teco e o saudoso Raylen (que na época era um garotinho), nos olhavam com cara de incredibilidade como se estivéssemos contando uma história de outro mundo, mas era a mais pura verdade.  Renison confessou depois que caíra com o corpo totalmente torto, bebera muita água suja e tinha de parar de nadar nas colunas pra tomar fôlego e poder nadar para a próxima coluna até chegar na margem.  Rimos muito com a aventura, e nunca mais eu cheguei a fazer incentivo equivalente, por mais bêbado que eu ficasse.

Um comentário:

  1. caracas essa eu nao sabia ..mais gostei de saber so imagino o cabelo do animal.

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