Auto biografia artística virtual. Registros de eventos, resenhas, desenhos, crônicas, contos, poesia marginal e histórias vividas. Tudo autoral. Quando não, os créditos serão dados.

Qualquer semelhança com a realidade é verdade mesmo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Furada Paulista

No ano de 1990 eu realizei uma viagem que me rendeu uma das maiores aventuras de minha vida.  Eu e meu amigo Rômel, fomos de Manaus a Belém de navio.  Era um daqueles navios enormes da ENASA que tinha tripulação da marinha e não existem mais.  Literalmente a viagem mais bonita que fiz na vida.  Eu quase não dormia.  Deitávamos tarde curtindo as rodadas de violão promovidas pelos passageiros e acordávamos cedo pra vermos o sol nascer.  O objetivo era irmos pra São Paulo tentarmos uma vida melhor.  De Belém pra Brasília seguimos de ônibus e diversas caronas que íamos conseguindo pelas estradas.  No estado de Tocantis, fomos roubados.  Nos levaram todas nossas bagagens e nos deixaram com a roupa do corpo.  De Brasília pra São Paulo fomos de trem.  24 horas no balanço cadenciado e hipnótico dos trilhos.
Em São Paulo é que foi a desgraça.  No mesmo dia em que pisamos na cidade, foi lançado o plano Collor.  Nos fodemos.  Aliás, o Brasil todo se fodeu.
Morei maior parte do tempo na cidade de Ribeirão Pires (penúltima cidade dentre as 23 que compõem o ABC paulista), na casa do amigo Fernando Aveiro.  Acordava todos os dias às 5 da manhã, pegava o trem e cada dia eu ia pra uma cidade diferente atrás de emprego.  Desgraça total.  Todas firmas estavam demitindo.  Ninguém estava contratando.  Daria tudo pra encontrar Collor e matá-lo com minhas próprias mãos.
Era uma noite gelada e eu estava sentado numa escadaria próximo à casa que eu morava.  Meditava sobre todas as dificuldades e me enganava com a esperança de superá-las.  A neblina estava densa com visibilidade de uns 8 metros.  De repente parou um carro frente a escadaria e desceram três indivíduos visivelmente embriagados.  Um deles portava uma arma automática cromada que foi apontada pra minha testa.
Como eu já estava quase conformado com minha situação desgraçada, não demonstrei grande reação.  Ao contrário, comecei a ver aquilo como um bom escapismo da onda de azar.
- Hoje tu vai morrer, filho da puta! – disse o sacana entre sorrisos cínicos dos amigos.
Fiquei calado e sério olhando diretamente nos olhos do cara.
- Olha só, ele ficou com raiva. – disse um dos companheiros.
Ficaram rindo e me jogando ameaças com baixo calão enquanto apontavam a arma pra minha testa.  Totalmente passivo, mas sem perder a seriedade, comecei a sentir a adrenalina me preencher o corpo.
Depois de uns 5 minutos naquele teatro sinistro eu me pronunciei:
- Tu quer mesmo me matar, seu baitôla?
O playboy ainda demonstrou uma certa reação:
- Olha só, ele ficou com raiva.
Ele estava certo.  Fiquei com raiva e insisti:
- Tu quer mesmo me matar, otário?
O clima de brincadeira deles se perdeu.  Começaram a demonstrar preocupação com minha reação.
- Quer mesmo, então atira, babaca. – ameacei.
Os três ficaram estáticos e calados.
- Acaba logo com isso e atira logo, porra! – continuei.
A arma continuava apontada pra minha testa agora com as duas mãos do pilantra que não sabia mais o que fazer.
Pra acabar logo com aquela palhaçada, coloquei minhas mãos em cima das dele e gritei.
- Tu não quer atirar, não?  Atira, caralho!  Vou te mostrar como se faz. – coloquei um de meus dedos em cima do dedo dele que estava sobre o gatilho e apertei.  Uma, duas e três vezes.  Só escutei o estalo seco, mas não senti nada.
Fiquei irado.
- Não tem bala? – gritei.
Eles estavam totalmente paralisados frente a minha reação inesperada.
Comecei a gritar e esmurrar o cara armado com todas as minhas forças:
- Filho da puta!  Como é que tu faz isso comigo?  Seu fresco!
Depois de uns 20 segundos que passei xingando e esmurrando o falso agressor, que agora era vítima, foi quando seus companheiros resolveram apartar.  Me seguraram enquanto o idiota entrava no carro com a arma descarregada e com o nariz sangrando.  Eu continuava xingando ele, enquanto os outros dois me largaram e também entraram no carro dizendo:
- Deixa ele.  Esse cara é doido.  Vamos nessa.
Partiram com o carro cantando pneu enquanto eu fiquei na calçada lagrimando de raiva e amaldiçoando todo o planeta.
Eu tinha apenas 17 anos e estava mesmo disposto a ir embora dessa vida.  Infelizmente não consegui (ou felizmente).  Outras oportunidades me viriam, mas até agora a dona Morte, ainda não quis me levar.
Interessante como as vezes temos a sensação que a sina do pobre é perecer.  Se fossemos abastados e tivéssemos muitas regalias, talvez vivêssemos menos pra curtir a luxúria, mas como estamos fadados pela crueldade do destino, levamos esse carma por décadas mais do que qualquer pessoa.
Que merda!

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