Na entrada do século XXI eu vivia uma
fase totalmente junkie. Diferente de minha atualidade “limpa”, nessa outrora
maldita eu usufruía destes prazeres artificiais sem muita coerência no tocante
a precaução, segurança e conseqüência. Prova disso está nas diversas vezes em
que encarei a morte de frente e nas outras diversas em que me vi em situações,
no mínimo, perigosas, em vários sentidos. Agora relato uma experiência que se
encaixa perfeitamente como exemplo de uma dessas surreais vivências. Lógico que
não lembro data exata, por motivos óbvios, mas o vivido jamais sairá de minhas
memórias.
Estava dentro do carro de um grande
amigo meu, com o qual sempre compartilhava vários ilícitos. Devido ao banco de
passageiro estar carregado com vários aparelhos eletrônicos em vias de
conserto, eu sentava-me no banco traseiro do automóvel, exatamente atrás deste
amigo postado ao volante. Íamos pela avenida Brasil, em pleno bairro infame da
Compensa, por volta do final da tarde, em direção a uma bocada comprar aquilo
que saciaria nossas vontades, ao menos naquele dia.
Com toda fissura manifestando-se
através da pressa e da euforia, levávamos o carro no limite da velocidade na
via, senão mais. Pressa esta que foi freada por um carro de luxo de cor branca
(não saberia identificar marca ou modelo do veículo) que “desfilava” numa
morosidade que literalmente provocava um pequeno congestionamento. Por várias
vezes, meu amigo motorista tentou ultrapassar o carrão na frente, mas sempre
era impedido, como propositalmente pelo próprio congestionador do trânsito.
Após várias dessas tentativas de ultrapassagem, finalmente que conseguimos
realizar uma com sucesso. Como num ímpeto impensado de desabafo, no momento em
que saíamos do paralelo com o carro de luxo, eu desci o vidro de meu lugar,
postei a parte superior de meu corpo janela afora e dei um leve toque no capô
do retardatário, complementando com um gesto de desprezo dirigido a seu
condutor. Recolhi-me de volta para meu assento e fechei a janela na simples
conclusão de que havia dado o recado que desejava. Ao pararmos no próximo
semáforo vermelho, eis que o desgraçado automóvel branco emparelhou com o
nosso. A janela desceu e dela surgiu a imagem de um homem visivelmente alterado
com uma mão no volante e outra apontando uma arma com uma carteira de
identificação com um brasão, na direção do amigo motorista. O mal encarado urso
raivoso disse repetidamente em tom quase de grito:
- Encosta, porra! Encosta o carro
agora...
Este meu amigo que não leva desaforos
pra casa, encarou o agressor retrucando:
- Tá falando comigo? Vai te foder!
Neste momento o semáforo esverdeou e
na velocidade da luz, dobramos a direita e repetimos a manobra mais três vezes,
contornando o quarteirão curto em segundos e retornando para mesma avenida em
que estávamos. Como nosso “caçador” tivera de realizar a primeira arrancada
mudando de faixa pra realizar a direita, não conseguiu acompanhar nosso veiculo
em fuga. Não o vimos mais.
Retornamos em nosso roteiro original
sem falarmos nada e assim que passou a adrenalina, refletimos. Logo
reconhecemos o personagem que nos proporcionou o susto. Aquele homem que nos
apontou uma arma e estava completamente decidido a realizar qualquer de suas
ameaças, era ninguém menos que Klinger de Araújo Costa.
Este dito cidadão quando em vida, que
o inferno o tenha, foi Secretário de Segurança do Estado. Alcançou muito
destaque na polêmica de ser acusado por constante prática de infração às mais
elementares normas de proteção aos Direitos Humanos. Respondia vários processos
na Justiça e comandava seu próprio grupo para militar, aplicando assim a
truculência e o horror nas operações realizadas pela cidade ou de seus
interesses particulares. Também especulavam-se as ligações deste homem com um
dos grupos de extermínio que vigoravam na época. Enfim, um psicopata com poder
que atuava protegido pela Lei.
Não demorou pra atinarmos o quão
estivemos pertos de termos nossas integridades físicas abaladas, talvez até
letalmente. No mínimo, seríamos presos. Provável de implantarem armas e drogas
para usarem de argumento que éramos bandidos.
Passado alguns meses, a notícia de
falecimento deste maldito pitbull hidrofóbico abundou a imprensa local. Não
pude evitar uma sensação de alívio com esta atualização.
Interessante como a vida e o acaso
podem nos gerar surpresas inesperadas que podem mudar tudo, ou simplesmente
acabar com tudo. Cabe a cada um de nós, conseguir usar do oportunismo e da excelência
de manutenção da integridade. Ajuda na sobrevivência urbana contemporânea.